
Alysson Lisboa Neves
Você acredita em ciborgues? Arnold Schwarzenegger foi um deles em seu emblemático filme O Exterminador do Futuro, de 1985. Com o avanço da tecnologia, estamos cada vez mais próximos de um hibridismo que une o humano e as tecnologias. “Onde termina o humano e onde começa a máquina?” Essa é uma das provocações que estão no instigante livro Antropologia do Ciborgue, de Donna Haraway, Hari Kunzru e Tomaz Tadeu.
Haraway é professora emérita no Departamento de História da Consciência e no Departamento de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Em seu livro, a autora questiona se o abstrato está deixando de existir e afirma que não estamos imunes à tecnologia: “A tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões — e é importante saber quem é que é feito e desfeito”.
“A tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões — e é importante saber quem é que é feito e desfeito”.
Para a autora, que escreveu o ensaio Manifesto Ciborgue em 1985, o ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero, e esse mito, com sua escrita e sua política, perturba as fronteiras de sexo-gênero: “Ciborgues podem expressar de forma mais séria o aspecto — algumas vezes parcial, fluido — do sexo e da corporificação sexual. Esse organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, está mudando o mundo que conhecemos até hoje.”
Pode parecer uma conversa de ficção científica, mas os ciborgues já estão entre nós. Basta olhar para as pessoas andando pelas cidades com seus fones de ouvido acoplados aos celulares, ou óculos que podem escanear os espaços automaticamente. Já estão acessíveis também tecnologias baseadas em Inteligência Artificial generativa que podem traduzir reuniões ao vivo para qualquer idioma em tempo real. Tecnologias hoje nos acoplam a sistemas que monitoram os batimentos cardíacos. Máquinas podem corrigir desvios da frequência cardíaca à distância. Não podemos esquecer das terapias genéticas, instalação de válvulas e stents cardíacos, dispositivos que medem o nível de glicose no sangue em tempo real e os exoesqueletos que podem ajudar pessoas com dificuldade motora.
Esses são alguns exemplos que reforçam a ideia de ciborgues: dispositivos para monitorar e ampliar a capacidade humana de ver, ouvir, perceber, dirigir e até sentir. Estamos cada vez mais imersos em tecnologias que, ao mesmo tempo em que nos amparam, nos tornam parte máquina, parte humano. Haraway vai além das questões tecnológicas e do acoplamento do corpo: “Em um certo sentido, os organismos deixaram de existir como objetos de conhecimento, cedendo lugar a componentes bióticos, isto é, tipos especiais de dispositivos de processamento de informação”.
“Ciborgues podem expressar de forma mais séria o aspecto — algumas vezes parcial, fluido — do sexo e da corporificação sexual. Esse organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, está mudando o mundo que conhecemos até hoje.”
Os riscos da humanização e o robô terapêutico
O Exterminador do Futuro, O Homem Bicentenário e O Homem de Seis Milhões de Dólares são exemplos de filmes que retratam ciborgues e robôs apresentados a nós com verossimilhança. Constituídos por cabeça, tronco, braços e pernas, esses robôs ficcionais são dotados de sentimentos inerentes aos humanos, como empatia, compaixão e até amor. Mas estamos falando de ficção científica. Não espere das máquinas sentimentos humanos.
E qual o perigo disso? Muitos jovens estão trocando terapias convencionais “entre humanos” por uma espécie de confessionário virtual. Trocar uma consulta presencial com um terapeuta por um bate-papo com a IA é tão perturbador quanto preocupante. As IAs, por mais evoluídas que possam parecer, não carregam “sentimentos humanos” e não conhecem a dor — seja ela física ou emocional. Conversar com a IA para “aliviar” as dores da depressão, por exemplo, é o mesmo que tentar se curar com placebo.
Haraway tem uma intrigante passagem em seu livro que nos ajuda a compreender as dicotomias entre a mudança da sociedade industrial e orgânica para um sistema polimorfo e informacional – isso reforça a ideia que trago sobre o uso das IAs para fins terapeuticos. Algoritmos não conhecem a reprodução humana, não vivenciam os conflitos, a violência, o pertencimento a grupos, a religião, a família… E poderia citar aqui inúmeras situações que, para serem respondidas, precisam de muito mais do que um prompt —, precisam de contexto.
Trocar a terapia por um papo no ChatGPT é um risco que pode potencializar o distanciamento e a negação, além de colocar em risco habilidades tão importantes para nossa composição como humanos. Os chatbots são excelentes para imitar a empatia, mas têm dificuldades com as nuances da interação humana. Além disso, as IAs foram projetadas para dar respostas que reforçam nossas crenças e valores o que pode, inclusive, recrudescer ideias radicais e fortalecer convicções. As LLMs também não estão preparadas para discutir questões existenciais complexas afinal, preferem respostas superficiais. “Só eu posso chorar quando estou triste” — lembre-se dessa frase da música Cérebro Eletrônico, de Gilberto Gil. Máquinas não são pessoas e não espere empatia e compaixão de verdade de uma inteligência artificial.